Não sei se é o dindom do Natal chegando, se foi um cheiro,um som, um reclame na tevê, não sei bem o que foi, mas o baú das minhas memórias foi sacolejado e se abriu diante de mim, guiado por aquele grito angustiado na vozinha de menino do meu filho mais velho, Rogério, então com 7 anos. E pulou pra fora o Natal de 1983. Mais precisamente, a manhã de 24 de dezembro de 1983.
- Mamãe, levanta rápido. O Natal, levaram o Natal, mamãe. A voz do meu pequenino era de desespero, de quase pavor e foi esse quase medonho som que conseguiu me despertar de vez. Ainda nem era 6 horas da manhã. Atrás dele, o irmão menor, Silvinho, então com 3 anos, chorava em silêncio. Dei um pulo da cama, abracei os 2 meninos e fomos andando até a sala, Rogério me puxando.
- Olha, mamãe, o Natal sumiu e não fui eu, não fui eu, já quase chorava Rogério. Olhei pro lugar onde estava a grande árvore comprada na véspera e procurei com os olhos os presentes que ficaram arrumados embaixo da árvore. Só o lugar vazio. Fomos andando até a cozinha, que também deixáramos arrumada com panetone. Nada, nem uma mísera xícara.
Na véspera, 23 de dezembro, eu havia feito uma enorme compra com tudo de delícias para o Natal e também já a compra do supermercado de janeiro. Geladeira forrada e na despensa, muita comida e guloseimas. Toalha nova de mesa pro Natal, lençois novos, toalhas novas de banho, roupas pros dois meninos, sapatos. Gastei tudo que tinha e o que não tinha.
Com que alegria, arrumamos tudo, montamos a árvore, quebramos bolas, o pisca-pisca enrolou muitas vezes e nós ajeitando tudo e nesse aconchego, colando carinho, sentimento e cumplicidade em torno da árvore. O que me fazia muito bem e diminuía um tiquinho a enorme culpa por ter presença tão escassa em casa, arrastada pelo trabalho e militância sindical e partidária, intensas. E agora, nem sombra da árvore de Natal,;nem dos presentes.
Coração já apertado e adivinhando tudo, abri a geladeira. Nada de peru, bolo, nega maluca, sucos, refrigerantes. Nem carnes, nem peixes. Nada. Só 1 garrafa de água pelo meio. Nem o arroz com galinha tava mais ali. Tudo, absolutamente tudo havia sumido. Desabei pensando no Natal pelado e no longo mês de janeiro pela frente sem nada. Cheguei a inicar um choro, mas parei ao ver os olhos dos meus filhos cheios de apreensão.
- Deitem no meu colo.
Sentei no chão, um filho deitado em cada perna e fiquei passando a mão na cabeleira de cada um, acalmando nossos corações. Falei baixinho pra eles: vamos fazer o Natal de novo.
E veio do Rogério a solução: correu pro quarto, pegou uma tesoura, cola e uma caixa de sapato vazia e botou o chão na minha frente:
- Mamãe, vamos arrumar o Natal.
Até hoje não sei como, porque minha habilidade manual é zero, mas fizemos uma árvore com uma folha de papel, pintamos e grudamos na caixa de sapato. Silvinho colocou o único enfeite que não tinha sido levado: a estrela. Botamos aquele arremedo de árvore na sala e ficamos um tempão os 3 olhando a árvore.
Fiz um macarrão e comemos os 3, esticando os fios.
Quanto caiu a noite, saí com os dois pra Praça da República e ali ficamos correndo, brincando, vendo as luzes da cidade até que o cansaço bateu em nós 3.
Voltando pra casa já depois de meia noite, Rogério me indagou com os olhos cheios d'água:
- Mamãe, não vai ter presente, né?
- Vai demorar, mas vai ter sim. E de hoje até o dia que chegarem os presentes, vai ter abraço e vocês dois vão poder dormir comigo.
Ele me abraçou, soluçou. Tava triste pelo Natal sem presentes e feliz em saber que haveria abraço sempre. Nessa noite, dormiu agarrado e mesmo dormindo, soluçava de vez em quando.
Anos depois encontrei a moça que trabalhou uma semana em casa e fez esse escanagalho todo no nosso Natal de 1983. Chorou muito e me contou a triste história de uma mãe com 4 filhos pequenos, sozinha, sem nada pra eles ano após ano. Viu naquela comilança toda e tanto presente, uma chance de levar um pouco de comida e alegria pros seus na noite de Natal. E me fez fazer de cada Natal um espaço de agregação, de alegria, de agradecimento e de juntar os afetos. E de distribuir solidariedade, todo santo dia. E mais ainda no Natal.
Neste Natal de 2015, peço aos céus que a fome não obrigue mais nenhuma pessoa a deixar outra sem nada. E que carinho, amor, paz e abraço sejam nossos maiores presentes.
![]() |
Meu flhote mais velho, mamando aos 2 meses de idade. |
![]() |
Já homem feito, em foto recente, deste ano de 2015. |
![]() |
Nós em vários momentos. |
![]() |
Rogério com 2 aos, na praia de São Jorge. |
![]() |
Rogério com 2 meses, no Satélite. |
![]() |
Rogério com 7 anos. |
Aqui e aqui
0 comentários:
Postar um comentário